Quinta-feira, 7 de Janeiro de 2010

Carne de amor

 

 

Carne. Carne de amor. Love-flesh,

como lhe chamou Whitman.

Amada carne até aos bordos cheia

de ardor, fremente de seiva.

Carne endurecida

até à alma. Erecta carne

profunda. Vertical esplendor

subindo às estrelas. Ou mais

alto ainda. Talvez

à eternidade.

Ámen.

 

Eugénio de Andrade

 

publicado por Lagash às 16:18
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Quarta-feira, 30 de Dezembro de 2009

Mar, mar e mar

 

 

Tu perguntas, e eu não sei,

eu também não sei o que é o mar.

 

É talvez uma lágrima caída dos meus olhos

ao reler uma carta, quando é de noite.

Os teus dentes, talvez os teus dentes,

miúdos, brancos dentes, sejam o mar,

um mar pequeno e frágil,

afável, diáfano,

no entanto sem música.

 

É evidente que a minha mãe me chama

quando uma onda e outra onda e outra

desfaz o seu corpo contra o meu corpo.

Então o mar é carícia,

luz molhada onde desperta meu coração recente.

 

Às vezes o mar é uma figura branca

cintilando entre os rochedos.

Não sei se fita a água

ou se procura

um beijo entre conchas transparentes.

 

Não, o mar não é nardo nem açucena.

É um adolescente morto

de lábios abertos aos lábios de espuma.

É sangue,

sangue onde a luz se esconde

para amar outra luz sobre as areias.

 

Um pedaço de lua insiste,

insiste e sobe lenta arrastando a noite.

Os cabelos da minha mãe desprendem-se,

espalham-se na água,

alisados por uma brisa

que nasce exactamente no meu coração

O mar volta a ser pequeno e meu,

anémona perfeita, abrindo nos meus dedos.

 

Eu também não sei o que é o mar.

Aguardo a madrugada, impaciente,

os pés descalços na areia.

 

Eugénio de Andrade

 

publicado por Lagash às 16:27
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Segunda-feira, 26 de Outubro de 2009

Espera

 

Horas, horas, sem fim,

pesadas, fundas,

esperarei por ti

até que todas as coisas sejam mudas.

 

Até que uma pedra irrompa

e floresça.

Até que um pássaro me saia da garganta

e no silêncio desapareça.

 

Eugénio de Andrade

 

publicado por Lagash às 16:22
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Quarta-feira, 8 de Julho de 2009

Shelley sem anjos e sem pureza

 

 

Shelley sem anjos e sem pureza,

aqui estou à tua espera nesta praça,

onde não há pombos mansos mas tristeza

e uma fonte por onde a água já não passa.

 

Das árvores não te falo pois estão nuas;

das casas não vale a pena porque estão

gastas pelo relógio e pelas luas

e pelos olhos de quem espera em vão.

 

De mim podia falar-te, mas não sei

que dizer-te desta história de maneira

que te pareça natural a minha voz.

 

Só sei que passo aqui a tarde inteira

tecendo estes versos e a noite

que te há-de trazer e nos há-de de deixar sós

 

Eugénio de Andrade

in As Mãos e os Frutos

 

publicado por Lagash às 16:22
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Quarta-feira, 11 de Fevereiro de 2009

Nas ervas

 

(Debora Salvalaggio)

 

Escalar-te lábio a lábio,

percorrer-te: eis a cintura

o lume breve entre as nádegas

e o ventre, o peito, o dorso

descer aos flancos, enterrar

 

os olhos na pedra fresca

dos teus olhos,

entregar-me poro a poro

ao furor da tua boca,

esquecer a mão errante

na festa ou na fresta

 

aberta à doce penetração

das águas duras,

respirar como quem tropeça

no escuro, gritar

às portas da alegria,

da solidão.

 

porque é terrivel

subir assim às hastes da loucura,

do fogo descer à neve.

 

abandonar-me agora

nas ervas ao orvalho -

a glande leve.

 

Eugénio de Andrade

publicado por Lagash às 16:17
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Segunda-feira, 19 de Janeiro de 2009

Nascimento de Eugénio de Andrade

 

(Eugénio de Andrade) 

 

Eugénio de Andrade nasceu no Fundão em 19 de Janeiro de 1923, e faleceu no Porto a 13 de Junho de 2005.

 

Eugénio de Andrade foi o pseudónimo de José Fontinhas Rato, fixou-se em Lisboa em 1932 com a mãe, que entretanto se separara do pai. Estudou no Liceu Passos Manuel e na Escola Técnica Machado de Castro, tendo escrito os seus primeiros poemas em 1936, o primeiro dos quais, intitulado "Narciso", publicou três anos mais tarde.

 

Em 1943 mudou-se para Coimbra, onde regressa depois de cumprido o serviço militar convivendo com Miguel Torga e Eduardo Lourenço. Tornou-se funcionário público em 1947, exercendo durante 35 anos as funções de inspector administrativo do Ministério da Saúde. Uma transferência de serviço levá-lo-ia a instalar-se no Porto em 1950, numa casa que só deixou mais de quatro décadas depois, quando se mudou para o edifício da Fundação Eugénio de Andrade, na Foz do Douro.

 

A sua consagração já acontecera dois anos antes, em 1948, com a publicação de "As mãos e os frutos", que mereceu os aplausos de críticos como Jorge de Sena ou Vitorino Nemésio. Entre as dezenas de obras que publicou encontram-se, na poesia, "Os amantes sem dinheiro" (1950), "As palavras interditas" (1951), "Escrita da Terra" (1974), "Matéria Solar" (1980), "Rente ao dizer" (1992), "Ofício da paciência" (1994), "O sal da língua" (1995) e "Os lugares do lume" (1998).

 

Em prosa, publicou "Os afluentes do silêncio" (1968), "Rosto precário" (1979) e "À sombra da memória" (1993), além das histórias infantis "História da égua branca" (1977) e "Aquela nuvem e as outras" (1986).

 

Durante os anos que se seguem, o poeta fez diversas viagens, foi convidado para participar em vários eventos e travou amizades com muitas personalidades da cultura portuguesa e estrangeira, como Joel Serrão, Miguel Torga, Afonso Duarte, Carlos Oliveira, Eduardo Lourenço, Joaquim Namorado, Sophia de Mello Breyner Andresen, Teixeira de Pascoaes, Vitorino Nemésio, Jorge de Sena, Mário Cesariny de Vasconcelos, José Luís Cano, Ángel Crespo, Luís Cernuda, Marguerite Yourcenar, Herberto Helder, Joaquim Manuel Magalhães, João Miguel Fernandes Jorge, Óscar Lopes, e muitos outros...

 

Apesar do seu enorme prestígio nacional e internacional, Eugénio de Andrade sempre viveu distanciado da chamada vida social, literária ou mundana, tendo o próprio justificado as suas raras aparições públicas com "essa debilidade do coração que é a amizade".

 

Recebeu inúmeras distinções, entre as quais o Prémio da Associação Internacional de Críticos Literários (1986), Prémio D. Dinis (1988), Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores (1989) e Prémio Camões (2001). Em Setembro de 2003 a sua obra "Os sulcos da sede" foi distinguida com o prémio de poesia do Pen Clube. Viveu em Lisboa de 1932 a 1943. Fixou-se no Porto, a partir de 1950, como funcionário dos Serviços Médico-Sociais. Faleceu a 13 de Junho de 2005, no Porto, após uma doença neurológica prolongada.

 

A obra poética de Eugénio de Andrade foi considerada por José Saramago como uma poesia do corpo a que se chega mediante uma depuração contínua.

 

Fonte: Wikipédia e outros

 

publicado por Lagash às 10:22
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Domingo, 18 de Janeiro de 2009

É urgente o amor

 

(Foto de um mural na Escola EB  2/3 de Paranhos do agrupamento Eugénio de Andrade - desconheço o autor da foto http://agrupamento-eugenioandrade.org/index.php?option=com_expose&Itemid=85 ) 

 

É urgente o amor.

É urgente um barco no mar.

 

É urgente destruir certas palavras,

ódio, solidão e crueldade,

alguns lamentos,

muitas espadas.

 

É urgente inventar alegria,

multiplicar os beijos, as searas,

é urgente descobrir rosas e rios

e manhãs claras.

 

Cai o silêncio nos ombros e a luz

impura, até doer.

É urgente o amor, é urgente

permanecer.

 

Eugénio de Andrade

 

publicado por Lagash às 16:15
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Sábado, 27 de Dezembro de 2008

Entre os teus lábios

 

("Lábios" de Sara Amaral - mais fotos da autora em www.olhares.com/Domaris ) 

 

Entre os teus lábios

é que a loucura acode,

desce à garganta,

invade a água.

 

No teu peito

é que o pólen do fogo

se junta à nascente,

alastra na sombra.

 

Nos teus flancos

é que a fonte começa

a ser rio de abelhas,

rumor de tigre.

 

Da cintura aos joelhos

é que a areia queima,

o sol é secreto,

cego o silêncio.

 

Deita-te comigo.

Ilumina meus vidros.

Entre lábios e lábios

toda a música é minha.

 

Eugénio de Andrade

 

publicado por Lagash às 16:25
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Sexta-feira, 24 de Outubro de 2008

Há Dias

 

(foto retirada da internet - desconheço o autor) 

 

Há dias em que julgamos

que todo o lixo do mundo

nos cai em cima

depois ao chegarmos à varanda avistamos

as crianças correndo no molhe

enquanto cantam

não lhes sei o nome

uma ou outra parece-me comigo

quero eu dizer :

com o que fui

quando cheguei a ser luminosa

presença da graça

ou da alegria

um sorriso abre-se então

num verão antigo

e dura

dura ainda.

 

Eugénio de Andrade

 

publicado por Lagash às 16:01
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Terça-feira, 24 de Junho de 2008

Adeus

 

 

 

 

 

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

 

Eugénio de Andrade

 

publicado por Lagash às 00:07
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Segunda-feira, 9 de Junho de 2008

Adeus

 
 
Como se houvesse uma tempestade
escurecendo os teus cabelos,
ou, se preferes, minha boca nos teus olhos
carregada de flor e dos teus dedos;
como se houvesse uma criança cega
aos tropeções dentro de ti,
eu falei em neve - e tu calavas
a voz onde contigo me perdi.
Como se a noite se viesse e te levasse,
eu era só fome o que sentia;
Digo-te adeus, como se não voltasse
ao país onde teu corpo principia.
Como se houvesse nuvens sobre nuvens
e sobre as nuvens mar perfeito,
ou, se preferes, a tua boca clara
singrando largamente no meu peito.

 

Eugénio de Andrade

publicado por Lagash às 22:48
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Domingo, 4 de Maio de 2008

Poema à mãe

 

 

 

No mais fundo de ti,
 

eu sei que traí, mãe.


 

Tudo porque já não sou


 

o menino adormecido


 

no fundo dos teus olhos.


 

 


 

Tudo porque tu ignoras


 

que há leitos onde o frio não se demora


 

e noites rumorosas de águas matinais.


 

Por isso, às vezes, as palavras que te digo


 

são duras, mãe,


 

e o nosso amor é infeliz.


 

 


 

Tudo porque perdi as rosas brancas


 

que apertava junto ao coração


 

no retrato da moldura.


 

Se soubesses como ainda amo as rosas,


 

talvez não enchesses as horas de pesadelos.


 

 


 

Mas tu esqueceste muita coisa;


 

esqueceste que as minhas pernas cresceram,


 

que todo o meu corpo cresceu,


 

e até o meu coração


 

ficou enorme, mãe!


 

Olha – queres ouvir-me?


 

–às vezes ainda sou o menino


 

que adormeceu nos teus olhos;


 

ainda aperto contra o coração


 

rosas tão brancas


 

como as que tens na moldura;


 

 


 

ainda oiço a tua voz:


 

Era uma vez uma princesa


 

no meio de um laranjal…


 

Mas – tu sabes – a noite é enorme,


 

e todo o meu corpo cresceu.


 

Eu saí da moldura,


 

dei às aves os meus olhos a beber.


 

Não me esqueci de nada, mãe.


 

Guardo a tua voz dentro de mim.


 

E deixo-te as rosas.


 

Boa noite.


 

Eu vou com as aves
 
 
 
Eugénio de Andrade
publicado por Lagash às 17:32
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Sábado, 26 de Janeiro de 2008

Breakfast em Maspalomas

 

 

"Das coisas que menos esperava
num hotel de cinco estrelas
era encontrar um gato
no meu prato de torradas.
Como num dos poemas últimos de Montale
enquanto o chá arrefecia
foi-se arrastando pelo muro do terraço
em leves e femininos passos de dança,
como faria Nuriev se tivesse
tomado comigo o pequeno almoço."

Poesias - Eugénio de Andrade

publicado por Lagash às 01:07
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Declaração

Declaro que a responsabilidade de todos os textos / poesia / prosa publicados é minha no respeitante à transcrição dos mesmos. Faço todos os possíveis para contactar o(s) autor(es) dos trabalhos a fim de autorizarem a publicação, na impossibilidade de o fazer, caso assim o entenda o autor ou representante legal deverá contactar-me a fim de que o mesmo seja retirado - o que será feito assim que receba a informação. Os trabalhos assinados "Mário L. Soares" são de minha autoria e estão protegidos com a lei dos direitos de autor vigente. Quanto às fotografias, todas, cujo autor não esteja identificado, são de "autor desconhecido" - caso surja o respectivo autor de alguma, queira por favor contactar-me para proceder à sua identificação e se for caso disso retirada do blog. Às restantes fotografias aplicarei o mesmo princípio dos trabalhos escritos. Obrigado. Mário L. Soares - lagash.blog@sapo.pt

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