Segunda-feira, 15 de Fevereiro de 2010

Acordar

 

 

Acordar da cidade de Lisboa, mais tarde do que as outras,

Acordar da Rua do Ouro,

Acordar do Rocio, às portas dos cafés,

Acordar

E no meio de tudo a gare, que nunca dorme,

Como um coração que tem que pulsar através da vigília e do sono.

 

Toda a manhã que raia, raia sempre no mesmo lugar,

Não há manhãs sobre cidades, ou manhãs sobre o campo.

À hora em que o dia raia, em que a luz estremece a erguer-se

Todos os lugares são o mesmo lugar, todas as terras são a mesma,

E é eterna e de todos os lugares a frescura que sobe por tudo.

 

Uma espiritualidade feita com a nossa própria carne,

Um alívio de viver de que o nosso corpo partilha,

Um entusiasmo por o dia que vai vir, uma alegria por o que pode acontecer de bom,

São os sentimentos que nascem de estar olhando para a madrugada,

Seja ela a leve senhora dos cumes dos montes,

Seja ela a invasora lenta das ruas das cidades que vão leste-oeste,

Seja

 

A mulher que chora baixinho

Entre o ruído da multidão em vivas...

O vendedor de ruas, que tem um pregão esquisito,

Cheio de individualidade para quem repara...

O arcanjo isolado, escultura numa catedral,

Siringe fugindo aos braços estendidos de Pã,

Tudo isto tende para o mesmo centro,

Busca encontrar-se e fundir-se

Na minha alma.

 

Eu adoro todas as coisas

E o meu coração é um albergue aberto toda a noite.

Tenho pela vida um interesse ávido

Que busca compreendê-la sentindo-a muito.

Amo tudo, animo tudo, empresto humanidade a tudo,

Aos homens e às pedras, às almas e às máquinas,

Para aumentar com isso a minha personalidade.

 

Pertenço a tudo para pertencer cada vez mais a mim próprio

E a minha ambição era trazer o universo ao colo

Como uma criança a quem a ama beija.

Eu amo todas as coisas, umas mais do que as outras,

Não nenhuma mais do que outra, mas sempre mais as que estou vendo

Do que as que vi ou verei.

Nada para mim é tão belo como o movimento e as sensações.

A vida é uma grande feira e tudo são barracas e saltimbancos.

Penso nisto, enterneço-me mas não sossego nunca.

 

Dá-me lírios, lírios

E rosas também.

Dá-me rosas, rosas,

E lírios também,

Crisântemos, dálias,

Violetas, e os girassóis

Acima de todas as flores...

 

Deita-me as mancheias,

Por cima da alma,

Dá-me rosas, rosas,

E lírios também...

 

Meu coração chora

Na sombra dos parques,

Não tem quem o console

Verdadeiramente,

Exceto a própria sombra dos parques

Entrando-me na alma,

Através do pranto.

Dá-me rosas, rosas,

E lírios também...

 

Minha dor é velha

Como um frasco de essência cheio de pó.

Minha dor é inútil

Como uma gaiola numa terra onde não há aves,

E minha dor é silenciosa e triste

Como a parte da praia onde o mar não chega.

Chego às janelas

Dos palácios arruinados

E cismo de dentro para fora

Para me consolar do presente.

Dá-me rosas, rosas,

E lírios também...

 

Mas por mais rosas e lírios que me dês,

Eu nunca acharei que a vida é bastante.

Faltar-me-á sempre qualquer coisa,

Sobrar-me-á sempre de que desejar,

Como um palco deserto.

 

Por isso, não te importes com o que eu penso,

E muito embora o que eu te peça

Te pareça que não quer dizer nada,

Minha pobre criança tísica,

Dá-me das tuas rosas e dos teus lírios,

Dá-me rosas, rosas,

E lírios também...

 

Álvaro de Campos

 

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Sábado, 19 de Dezembro de 2009

Barrow-on-furness V

 

 

 

Há quanto tempo, Portugal, há quanto 

Vivemos separados! Ah, mas a alma, 

Esta alma incerta, nunca forte ou calma, 

Não se distrai de ti, nem bem nem tanto. 

 

Sonho, histérico oculto, um vão recanto... 

O rio Furness, que é o que aqui banha, 

Só ironicamente me acompanha, 

Que estou parado e ele correndo tanto... 

 

Tanto? Sim, tanto relativamente... 

Arre, acabemos com as distinções,  

As subtilezas, o interstício, o entre, 

A metafísica das sensações — 

 

Acabemos com isto e tudo mais... 

Ah, que ânsia humana de ser rio ou cais!

 

Álvaro de Campos

 

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Sexta-feira, 18 de Dezembro de 2009

Barrow-on-furness IV

 

 

IV 

 

Conclusão a sucata!... Fiz o cálculo, 

Saiu-me certo, fui elogiado... 

Meu coração é um enorme estrado 

Onde se expõe um pequeno animálculo 

 

A microscópio de desilusões 

Findei, prolixo nas minúcias fúteis... 

Minhas conclusões práticas, inúteis... 

Minhas conclusões teóricas, confusões... 

 

Que teorias há para quem sente 

O cérebro quebrar-se, como um dente 

Dum pente de mendigo que emigrou?  

 

Fecho o caderno dos apontamentos 

E faço riscos moles e cinzentos 

Nas costas do envelope do que sou... 

 

Álvaro de Campos

 

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Quinta-feira, 17 de Dezembro de 2009

Barrow-on-furness III

 

 

III 

 

 

Corre, raio de rio, e leva ao mar

A minha indiferença subjectiva!

Qual "leva ao mar"! Tua presença esquiva

Que tem comigo e com o meu pensar?

 

Lesma de sorte! Vivo a cavalgar

A sombra de um jumento. A vida viva

Vive a dar nomes ao que não se activa,

Morre a pôr etiquetas ao grande ar...

 

Escancarado Furness, mais três dias

Te, aturarei, pobre engenheiro preso

A sucessibilíssimas vistorias...

 

Depois, ir-me-ei embora, eu e o desprezo

(E tu irás do mesmo modo que ias),

Qualquer, na gare, de cigarro aceso

 

Álvaro de Campos

 

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Quarta-feira, 16 de Dezembro de 2009

Barrow-on-Furness II

 

 

II 

 

Deuses, forças, almas de ciência ou fé,

Eh! Tanta explicação que nada explica!

Estou sentado no cais, numa barrica,

E não compreendo mais do que de pé.

 

Por que o havia de compreender?

Pois sim, mas também por que o não havia?

Água do rio, correndo suja e fria,

Eu passo como tu, sem mais valer...

 

Ó universo, novelo emaranhado,

Que paciência de dedos de quem pensa

Em outras cousa te põe separado?

 

Deixa de ser novelo o que nos fica...

A que brincar? Ao amor?, à indif'rença?

Por mim, só me levanto da barrica.

 

Álvaro de Campos

 

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Terça-feira, 15 de Dezembro de 2009

Barrow-on-Furness I

 

 

I

 

 

Sou vil, sou reles, como toda a gente,

Não tenho ideais, mas não os tem ninguém.

Quem diz que os tem é como eu, mas mente.

Quem diz que busca é porque não os tem.

 

É com a imaginação que eu amo o bem.

Meu baixo ser porém não mo consente.

Passo, fantasma do meu ser presente,

Ébrio, por intervalos, de um Além.

 

Como todos não creio no que creio.

Talvez possa morrer por esse ideal.

Mas, enquanto não morro, falo e leio.

 

Justificar-me? Sou quem todos são...

Modificar-me? Para meu igual? ...

- Acaba lá com isso, ó coração!

 

Álvaro de Campos

 

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Sexta-feira, 16 de Outubro de 2009

Não estou pensando em nada

 

 

Não estou pensando em nada 

E essa coisa central, que é coisa nenhuma,  

É-me agradável como o ar da noite, 

Fresco em contraste com o verão quente do dia, 

Não estou pensando em nada, e que bom! 

 

Pensar em nada 

É ter a alma própria e inteira. 

Pensar em nada 

É viver intimamente 

O fluxo e o refluxo da vida... 

  

Não estou pensando em nada. 

Só, como se me tivesse encostado mal. 

Uma dor nas costas, ou num lado das costas,  

Há um amargo de boca na minha alma:  

É que, no fim de contas, 

Não estou pensando em nada, 

Mas realmente em nada, 

Em nada...

 

Álvaro de Campos

1935

 

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Sábado, 13 de Junho de 2009

Parabéns Fernando

 

 

 

Meu caro Fernando dos teus muitos eus

Eu que difícil acho, ser apenas um eu

Admiro os que tens, nos teus

 

Eu sei lá como fazes quando te escreves

Sinceramente és o verdadeiro poeta

E do que fazes és tu que percebes

 

Não há no mundo, pelo menos que eu saiba

Outro como tu que a nós nos entenda

E num pequeno papel ponhas a alma, e caiba

 

Passeaste por cidades e bucólicos campos

Foste engenheiro, monárquico, futurista,

Viajaste sem sair do chapéu dos tempos

 

Portugal, como Camões em obra criaste,

Para a todos dizeres quem somos, e donde viemos

E no fundo és tu próprio. És o que ensinaste.

 

De bons costumes, és livre homem,

Foste e honraste o ser,

 És pedra viva para que todos amem.

 

Cento e vinte um, são os anos que agora tens,

Desde o dia do teu nascimento,

Estás jovem, não estás acabado. Aceita os meus parabéns.

 

Mário L. Soares

 

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Sábado, 6 de Junho de 2009

Diluente

 

(Foto: GettyImages) 

 

A vizinha do número catorze ria hoje da porta

De onde há um mês saiu o enterro do filho pequeno.

Ria naturalmente com a alma na cara.

Está certo: é a vida.

A dor não dura porque a dor não dura.

Está certo.

Repito: está certo.

Mas o meu coração não está certo

O meu coração romântico faz enigmas do egoísmo da vida.

 

Cá está a lição, ó alma da gente!

Se a mãe esquece o filho que saiu dela e morreu,

Quem se vai dar ao trabalho de se lembrar de mim?

Estou só no mundo, como um pião de cair.

Posso morrer como o orvalho seca.

Por uma arte natural de natureza solar,

Posso morrer à vontade da deslembrança,

Posso morrer como ninguém…

Mas isto dói,

Isto é indecente para quem tem coração…

Isto..

Sim, isto fica-me nas goelas como uma sanduíche com lágrimas…

Glória? Amor? O anseio de uma alma humana?

Apoteose às avessas…

Dêem-me Água de Vidago, que eu quero esquecer a Vida!

 

Álvaro de Campos

 

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Quinta-feira, 26 de Fevereiro de 2009

Adiamento

 

 

Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã... 

Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã, 

E assim será possível; mas hoje não... 

Não, hoje nada; hoje não posso. 

A persistência confusa da minha subjectividade objectiva, 

O sono da minha vida real, intercalado, 

O cansaço antecipado e infinito, 

Um cansaço de mundos para apanhar um eléctrico... 

Esta espécie de alma... 

Só depois de amanhã... 

Hoje quero preparar-me, 

Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte... 

Ele é que é decisivo. 

Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos... 

Amanhã é o dia dos planos. 

Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo; 

Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã... 

Tenho vontade de chorar, 

Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro... 

 

Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo. 

Só depois de amanhã... 

Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana. 

Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância... 

Depois de amanhã serei outro, 

A minha vida triunfar-se-á, 

Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático 

Serão convocadas por um edital... 

Mas por um edital de amanhã... 

Hoje quero dormir, redigirei amanhã... 

Por hoje, qual é o espectáculo que me repetiria a infância? 

Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã, 

Que depois de amanhã é que está bem o espectáculo... 

Antes, não... 

Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei. 

Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser. 

Só depois de amanhã... 

Tenho sono como o frio de um cão vadio. 

Tenho muito sono. 

Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã... 

Sim, talvez só depois de amanhã... 

 

O porvir... 

Sim, o porvir...

 

Álvaro de Campos (14/04/1928)

 

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Quinta-feira, 5 de Fevereiro de 2009

Apontamento

(foto retirada do site http://jornalismob.wordpress.com/) 

 

A minha alma partiu-se como um vaso vazio.

Caiu pela escada excessivamente abaixo.

Caiu das mãos da criada descuidada.

Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.

 

Asneira? Impossível? Sei lá!

Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.

Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.

 

Fiz barulho na queda como um vaso que se partia.

Os deuses que há debruçam-se do parapeito da escada.

E fitam os cacos que a criada deles fez de mim.

 

Não se zangam com ela.

São tolerantes com ela.

O que eu era um vaso vazio?

 

Olham os cacos absurdamente conscientes,

Mas conscientes de si-mesmos, não conscientes deles.

 

Olham e sorriem.

Sorriem tolerantes à criada involuntária.

 

Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas.

Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros.

 

A minha obra? A minha alma principal? A minha vida?

Um caco.

E os deuses olham-no especialmente, pois não sabem porque ficou ali.

 

Álvaro de Campos

 

 

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Domingo, 4 de Janeiro de 2009

Lisbon Revisited

 

(Fernando Pessoa por Júlio Pomar) 

 

NÃO: Não quero nada. 

Já disse que não quero nada.

 

Não me venham com conclusões! 

A única conclusão é morrer.

 

Não me tragam estéticas! 

Não me falem em moral!

 

Tirem-me daqui a metafísica! 

Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas 

Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) — 

Das ciências, das artes, da civilização moderna!

 

Que mal fiz eu aos deuses todos? 

 

Se têm a verdade, guardem-na!

 

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica. 

Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo. 

Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

 

Não me macem, por amor de Deus! 

 

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável? 

Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa? 

Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade. 

Assim, como sou, tenham paciência! 

Vão para o diabo sem mim, 

Ou deixem-me ir sozinho para o diabo! 

Para que havemos de ir juntos?

 

Não me peguem no braço! 

Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.  

Já disse que sou sozinho! 

Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!

 

Ó céu azul — o mesmo da minha infância —

Eterna verdade vazia e perfeita!  

Ó macio Tejo ancestral e mudo, 

Pequena verdade onde o céu se reflecte! 

Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje! 

Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

 

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo... 

E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!

 

Álvaro de Campos – 1923

 

 

(Fernando Pessoa por Júlio Pomar) 

 

Nada me prende a nada.  

Quero cinquenta coisas ao mesmo tempo.  

Anseio com uma angústia de fome de carne  

O que não sei que seja —  

Definidamente pelo indefinido...  

Durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto  

De quem dorme irrequieto, metade a sonhar.  

Fecharam-me todas as portas abstractas e necessárias.  

Correram cortinas de todas as hipóteses que eu poderia ver da rua.  

Não há na travessa achada o número da porta que me deram.  

  

Acordei para a mesma vida para que tinha adormecido.  

Até os meus exércitos sonhados sofreram derrota.  

Até os meus sonhos se sentiram falsos ao serem sonhados.  

Até a vida só desejada me farta – até essa vida...  

  

Compreendo a intervalos desconexos;  

Escrevo por lapsos de cansaço;  

E um tédio que é até do tédio arroja-me à praia.  

  

Não sei que destino ou futuro compete à minha angústia sem leme;  

Não sei que ilhas do sul impossível aguardam-me náufrago;  

Ou que palmares de literatura me darão ao menos um verso.  

Não, não sei isto, nem outra coisa, nem coisa nenhuma...  

E, no fundo do meu espírito, onde sonho o que sonhei,  

Nos campos últimos da alma, onde memoro sem causa  

(E o passado é uma névoa natural de lágrimas falsas),  

Nas estradas e atalhos das florestas longínquas  

Onde supus o meu ser,  

Fogem desmantelados, últimos restos  

Da ilusão final,  

Os meus exércitos sonhados, derrotados sem ter sido,  

As minhas cortes por existir, esfaceladas em Deus.  

  

Outra vez te revejo,  

Cidade da minha infância pavorosamente perdida…  

Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui…  

Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei,  

E aqui tornei a voltar, e a voltar.  

E aqui de novo tornei a voltar?  

Ou somos todos os Eu que estive aqui ou estiveram,  

Uma série de contas-entes ligados por um fio-memória,  

Uma série de sonhos de mim de alguém de fora de mim?  

 

Outra vez te revejo,  

Com o coração mais longínquo, a alma menos minha.  

  

Outra vez te revejo – Lisboa e Tejo e tudo –,  

Transeunte inútil de ti e de mim,  

Estrangeiro aqui como em toda a parte,  

Casual na vida como na alma,  

Fantasma a errar em salas de recordações,  

Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem  

No castelo maldito de ter que viver…  

 

Outra vez te revejo,  

Sombra que passa através das sombras, e brilha  

Um momento a uma luz fúnebre desconhecida,  

E entra na noite como um rastro de barco se perde  

Na água que deixa de se ouvir…  

 

Outra vez te revejo,  

Mas, ai, a mim não me revejo!  

Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico,  

E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim -  

Um bocado de ti e de mim!...

 

Álvaro de Campos – 26-04-1926

 

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Domingo, 30 de Novembro de 2008

Morte de Fernando Pessoa

 

("Retrato de Fernando Pessoa" - Quadro de Almada Negreiros de 1954 pintado para o restaurante Irmãos Unidos) 

 

Às três horas e vinte minutos da tarde de 13 de Junho de 1888 nascia em Lisboa, capital portuguesa, Fernando Pessoa. O parto ocorreu no quarto andar esquerdo do nº 4 do Largo de São Carlos, em frente da ópera de Lisboa (Teatro de São Carlos). De famílias da pequena aristocracia, pelo lado paterno e materno, o seu pai era funcionário público do Ministério da Justiça e crítico musical do «Diário de Notícias», Joaquim de Seabra Pessoa (38), natural de Lisboa; e a sua mãe D. Maria Magdalena Pinheiro Nogueira Pessoa (26), natural da Ilha Terceira (Açores). Viviam com eles a avó Dionísia, doente mental e duas criadas velhas, Joana e Emília.

 

 

(Fernando Pessoa em menino) 

 

É baptizado em 21 de Julho na Igreja dos Mártires, no Chiado. Os padrinhos são a sua Tia Anica (D. Ana Luísa Pinheiro Nogueira, sua tia materna) e o General Chaby. A razão por detrás do nome Fernando António encontra-se relacionada com Santo António: a sua família reclamava uma ligação genealógica com Fernando de Bulhões, nome de baptismo de Santo António, cujo dia tradicionalmente consagrado em Lisboa é 13 de Junho, dia em que Fernando Pessoa nasceu.

 

A sua infância e adolescência foram marcadas por factos que o influenciariam posteriormente. Às cinco horas da manhã de 24 de Julho de 1893, o seu pai morre com 43 anos vítima de tuberculose. A morte é reportada no Diário de Notícias do dia. Joaquim de Seabra Pessoa deixou-o com apenas cinco anos, a mãe e o seu irmão Jorge que viria a falecer no outro ano sem chegar a completar um ano. A mãe então vê-se obrigada a leiloar parte da mobília e mudam-se para uma casa mais modesta, o terceiro andar do n.º 104 da Rua de São Marçal. É também nesse período que surge o seu primeiro heterónimo, Chevalier de Pas, facto relatado pelo próprio Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro, numa carta de 1935 em que fala extensamente sobre a origem dos heterónimos. Ainda no mesmo ano cria seu primeiro poema, um verso curto com a infantil epígrafe de À Minha Querida Mamã. Sua mãe casa-se pela segunda vez em 1895 por procuração, na Igreja de São Mamede em Lisboa, com o comandante João Miguel Rosa, cônsul de Portugal em Durban (África do Sul), o qual havia conhecido um ano antes. Em África, Pessoa viria a demonstrar possuir desde cedo habilidades para a literatura.

 

 

(Fernando Pessoa aos 20 anos de idade) 

 

O padrasto e a mãe. Em razão do casamento, muda-se com a mãe e um tio-avô, Manuel Gualdino da Cunha, para Durban, onde passa a maior parte da sua juventude. Viajam no navio Funchal até à Madeira e depois no paquete Inglês Hawarden Castle até ao Cabo da Boa Esperança. Tendo que dividir a atenção da mãe com os filhos do casamento e com o padrasto, Pessoa isola-se, o que lhe propiciava momentos de reflexão. Em Durban recebe uma educação britânica, o que lhe proporciona um profundo contacto com a língua inglesa. Os seus primeiros textos e estudos são feitos em inglês. Mantém contato com a literatura inglesa através de autores como Shakespeare, Edgar Allan Poe, John Milton, Lord Byron, John Keats, Percy Shelley, Alfred Tennyson, entre outros. O inglês teve grande destaque na sua vida, trabalhando com o idioma quando, mais tarde, se torna correspondente comercial em Lisboa, além de utilizar o idioma em alguns dos seus textos e traduzir trabalhos de poetas ingleses, como O Corvo e Annabel Lee de Edgar Allan Poe. Com excepção de Mensagem, os únicos livros publicados em vida são os das colectâneas dos seus poemas ingleses: Antinous e 35 Sonnets e English Poems I - II e III, escritos entre 1918 e 1921.

 

Faz o curso primário na escola de freiras irlandesas da West Street, onde realiza a sua primeira comunhão e percorre em dois anos o equivalente a quatro. Em 1899 ingressa na Durban High School, onde permanecerá durante três anos e será um dos primeiros alunos da turma, no mesmo ano cria o pseudónimo Alexander Search, no qual envia cartas a si mesmo utilizando esse nome. No ano de 1901 é aprovado com distinção no seu primeiro exame da Cape Scholl High Examination, escreve os primeiros poemas em inglês. Na mesma época morre sua irmã Madalena Henriqueta, de dois anos. De férias, parte em 1901 com a família para Portugal. No navio em que viajam, o paquete König, vem o corpo da sua irmã falecida. Em Lisboa mora com a família em Pedrouços e depois na Avenida de D. Carlos I, n.º. 109, 3º. Esquerdo. Na capital portuguesa nasce João Maria, quarto filho do segundo casamento da mãe de Pessoa. Viaja com o padrasto, a mãe e os irmãos à Ilha Terceira, nos Açores, onde vive a família materna. Também partem para Tavira onde para visitar os parentes paternos. Nessa época escreve a poesia Quando ela passa.

 

 

(Fernando Pessoa) 

 

Fernando Pessoa permanece em Lisboa enquanto todos regressam para Durban: a mãe, o padrasto, os irmãos e a criada Paciência que viera com eles. Volta sozinho para a África no vapor Herzog. Na mesma época, tenta escrever romances em inglês e matricula-se na Commercial School. Lá estuda à noite enquanto de dia se ocupa com disciplinas humanísticas. Em 1903, candidata-se à Universidade do Cabo da Boa Esperança. Na prova de exame para a admissão, não obtém uma boa classificação, mas tira a melhor nota entre os 899 candidatos no ensaio de estilo inglês. Recebe por isso o Queen Victoria Memorial Prize («Prémio Rainha Vitória»). Um ano depois novamente ingressa na Durban High School onde frequenta o equivalente a um primeiro ano universitário. Aprofunda a sua cultura, lendo clássicos ingleses e latinos; escreve poesia e prosa em inglês e surgem os heterónimos Charles Robert Anon e H. M. F. Lecher; nasce a sua irmã Maria Clara e publica o jornal do liceu um ensaio crítico intitulado Macaulay. Por fim, encerra os seus bem sucedidos estudos na África do Sul após realizar na Universidade o «Intermediate Examination in Arts», adquirindo bons resultados.

 

Deixando a família em Durban, regressou definitivamente à capital portuguesa, sozinho, em 1905. Passa a viver com a avó Dionísia e as duas tias na Rua da Bela Vista, 17. A mãe e o padrasto também retornam a Lisboa, durante um período de férias de um ano em que Pessoa volta a morar com eles. Continua a produção de poemas em inglês e em 1906 matricula-se no Curso Superior de Letras (actual Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa), que abandona sem sequer completar o primeiro ano. É nesta época que entra em contacto com importantes escritores de literatura da língua portuguesa. Interessa-se pela obra de Cesário Verde e pelos sermões do Padre Antônio Vieira.

 

 

(Fernando Pessoa, 1928, aos 40 anos - foto do seu bilhete de identidade) 

 

Em Agosto de 1907, morre a sua avó Dionísia, deixando-lhe uma pequena herança. Com esse dinheiro, monta uma pequena tipografia, que rapidamente faliu, na Rua da Conceição da Glória, 38-4.º, sob o nome de «Empresa Íbis — Tipografia Editora — Oficinas a Vapor». A partir de 1908, dedica-se à tradução de correspondência comercial, um trabalho que poderíamos chamar de "correspondente estrangeiro". Nessa profissão trabalha a vida toda, tendo uma modesta vida pública.

 

Inicia a sua actividade de ensaísta e crítico literário com a publicação, em 1912, na revista «Águia», do artigo «A nova poesia portuguesa sociologicamente considerada», a que se seguiriam outros.

 

Pessoa é internado no dia 29 de Novembro de 1935, no Hospital de São Luís dos Franceses, com diagnóstico de "cólica hepática" (provavelmente uma colangite aguda causada por cálculo biliar), falecendo de suas complicações, possivelmente associada a uma cirrose hepática provocada pelo óbvio excesso de álcool ao longo da sua vida (a título de curiosidade acredita-se que era muito fiel à aguardente "Águia Real"). No dia 30 de Novembro morre aos 47 anos.

 

 

(Fernando Pessoa - a sua última foto tirada por Augusto Ferreira Gomes) 

 

Nos últimos momentos da sua vida pede os óculos e clama pelos seus heterónimos. A sua última frase é escrita no idioma no qual foi educado, o inglês: I know not what tomorrow will bring ("Eu não sei o que o amanhã trará").

 

Fonte: Wikipédia

 

Caro Fernando,

 

Parece que te conheço,

Sei que me ouves – não te esqueço.

Mando-te um abraço do lado de cá.

E digo-te - também não sei o que o amanhã trará!

 

Mário L. Soares

 

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Sábado, 29 de Novembro de 2008

Estou Cansado

(foto retirada da internet - desconheço o autor) 

 

Estou cansado, é claro, 

Porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado. 

De que estou cansado, não sei: 

De nada me serviria sabê-lo, 

Pois o cansaço fica na mesma. 

A ferida dói como dói 

E não em função da causa que a produziu. 

Sim, estou cansado, 

E um pouco sorridente 

De o cansaço ser só isto — 

Uma vontade de sono no corpo, 

Um desejo de não pensar na alma, 

E por cima de tudo uma transparência lúcida 

Do entendimento retrospectivo... 

E a luxúria única de não ter já esperanças? 

Sou inteligente; eis tudo. 

Tenho visto muito e entendido muito o que tenho visto, 

E há um certo prazer até no cansaço que isto nos dá, 

Que afinal a cabeça sempre serve para qualquer coisa.

 

Álvaro de Campos

publicado por Lagash às 16:16
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Segunda-feira, 8 de Setembro de 2008

Acaso

 

 

No acaso da rua o acaso da rapariga loira.
Mas não, não é aquela.

 

A outra era noutra rua, noutra cidade, e eu era outro.

 

Perco-me subitamente da visão imediata,
Estou outra vez na outra cidade, na outra rua,
E a outra rapariga passa.

 

Que grande vantagem o recordar intransigentemente!
Agora tenho pena de nunca mais ter visto a outra rapariga,
E tenho pena de afinal nem sequer ter olhado para esta.

 

Que grande vantagem trazer a alma virada do avesso!
Ao menos escrevem-se versos.
Escrevem-se versos, passa-se por doido, e depois por gênio, se calhar,
Se calhar, ou até sem calhar,
Maravilha das celebridades!

 

Ia eu dizendo que ao menos escrevem-se versos...
Mas isto era a respeito de uma rapariga,
De uma rapariga loira,
Mas qual delas?
Havia uma que vi há muito tempo numa outra cidade,
Numa outra espécie de rua;
E houve esta que vi há muito tempo numa outra cidade
Numa outra espécie de rua;
Por que todas as recordações são a mesma recordação,
Tudo que foi é a mesma morte,
Ontem, hoje, quem sabe se até amanhã?

 

Um transeunte olha para mim com uma estranheza ocasional.
Estaria eu a fazer versos em gestos e caretas?
Pode ser... A rapariga loira?
É a mesma afinal...
Tudo é o mesmo afinal ...

 

Só eu, de qualquer modo, não sou o mesmo, e isto é o mesmo também afinal.

 

Álvaro de Campos

 

publicado por Lagash às 16:29
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