Domingo, 4 de Janeiro de 2009

Lisbon Revisited

 

(Fernando Pessoa por Júlio Pomar) 

 

NÃO: Não quero nada. 

Já disse que não quero nada.

 

Não me venham com conclusões! 

A única conclusão é morrer.

 

Não me tragam estéticas! 

Não me falem em moral!

 

Tirem-me daqui a metafísica! 

Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas 

Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) — 

Das ciências, das artes, da civilização moderna!

 

Que mal fiz eu aos deuses todos? 

 

Se têm a verdade, guardem-na!

 

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica. 

Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo. 

Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

 

Não me macem, por amor de Deus! 

 

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável? 

Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa? 

Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade. 

Assim, como sou, tenham paciência! 

Vão para o diabo sem mim, 

Ou deixem-me ir sozinho para o diabo! 

Para que havemos de ir juntos?

 

Não me peguem no braço! 

Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.  

Já disse que sou sozinho! 

Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!

 

Ó céu azul — o mesmo da minha infância —

Eterna verdade vazia e perfeita!  

Ó macio Tejo ancestral e mudo, 

Pequena verdade onde o céu se reflecte! 

Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje! 

Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

 

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo... 

E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!

 

Álvaro de Campos – 1923

 

 

(Fernando Pessoa por Júlio Pomar) 

 

Nada me prende a nada.  

Quero cinquenta coisas ao mesmo tempo.  

Anseio com uma angústia de fome de carne  

O que não sei que seja —  

Definidamente pelo indefinido...  

Durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto  

De quem dorme irrequieto, metade a sonhar.  

Fecharam-me todas as portas abstractas e necessárias.  

Correram cortinas de todas as hipóteses que eu poderia ver da rua.  

Não há na travessa achada o número da porta que me deram.  

  

Acordei para a mesma vida para que tinha adormecido.  

Até os meus exércitos sonhados sofreram derrota.  

Até os meus sonhos se sentiram falsos ao serem sonhados.  

Até a vida só desejada me farta – até essa vida...  

  

Compreendo a intervalos desconexos;  

Escrevo por lapsos de cansaço;  

E um tédio que é até do tédio arroja-me à praia.  

  

Não sei que destino ou futuro compete à minha angústia sem leme;  

Não sei que ilhas do sul impossível aguardam-me náufrago;  

Ou que palmares de literatura me darão ao menos um verso.  

Não, não sei isto, nem outra coisa, nem coisa nenhuma...  

E, no fundo do meu espírito, onde sonho o que sonhei,  

Nos campos últimos da alma, onde memoro sem causa  

(E o passado é uma névoa natural de lágrimas falsas),  

Nas estradas e atalhos das florestas longínquas  

Onde supus o meu ser,  

Fogem desmantelados, últimos restos  

Da ilusão final,  

Os meus exércitos sonhados, derrotados sem ter sido,  

As minhas cortes por existir, esfaceladas em Deus.  

  

Outra vez te revejo,  

Cidade da minha infância pavorosamente perdida…  

Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui…  

Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei,  

E aqui tornei a voltar, e a voltar.  

E aqui de novo tornei a voltar?  

Ou somos todos os Eu que estive aqui ou estiveram,  

Uma série de contas-entes ligados por um fio-memória,  

Uma série de sonhos de mim de alguém de fora de mim?  

 

Outra vez te revejo,  

Com o coração mais longínquo, a alma menos minha.  

  

Outra vez te revejo – Lisboa e Tejo e tudo –,  

Transeunte inútil de ti e de mim,  

Estrangeiro aqui como em toda a parte,  

Casual na vida como na alma,  

Fantasma a errar em salas de recordações,  

Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem  

No castelo maldito de ter que viver…  

 

Outra vez te revejo,  

Sombra que passa através das sombras, e brilha  

Um momento a uma luz fúnebre desconhecida,  

E entra na noite como um rastro de barco se perde  

Na água que deixa de se ouvir…  

 

Outra vez te revejo,  

Mas, ai, a mim não me revejo!  

Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico,  

E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim -  

Um bocado de ti e de mim!...

 

Álvaro de Campos – 26-04-1926

 

publicado por Lagash às 16:15
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